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“Notícias de um abraço”, crônica de Sérgio da Costa Ramos – O gesto de carinho na Praça XV que surpreendeu o país

Notícias de um abraço
Por Sérgio da Costa Ramos

O homem anda tão brutalizado nas cidades, seus malfeitos, tão disseminadas em nosso meio que, um belo dia, um gesto de afeto chamará “dramaticamente” a atenção das pessoas.

Diante de um “abraço” – o ato de um ser humano enlaçar o outro e trazê-lo para junto do peito -, o homem surpreso, indagará:
– O que é isso?

E aí, na contramão das manchetes, os jornais publicarão a notícia de um “abraço”.
Ou de um “beijo”:

“Cientistas do comportamento humano, dois psiquiatras, um dermatologista e uma assistente social estudam a natureza do gesto que chamou a atenção do Brasil, ontem, em Florianópolis, Santa Catarina. Um homem e uma mulher, num banco da Praça XV de Novembro, no coração da cidade, aproximaram os seus troncos, um de frente para o outro. E culminaram o seu estranho comportamento unindo os lábios –  e os comprimindo num ato que chamou a atenção de fotógrafos e passantes. A 3ª Delegacia de Polícia do bairro não chegou a deter os protagonistas pelo gesto bizarro, nem os indiciou em qualquer conduta suscetível do enquadramento penal.”

Nesta época de tanto desamor, tanta crueldade, em que tortura deixa as masmorras para exercer sua infâmia à luz do sol, espanta que os pelourinhos não retornem às praças públicas, para que todos presenciem o homem em seu estado animal, açoitando o próprio homem.

Nesses tempos de miséria e vilania, em que tapas ecoam nas esquinas com sonoplastia de radioteatro, bandidos encarcerados decretam a prisão da sociedade e verdugos fardados atordoam pobres trabalhadores com o peludo braço do Estado marginal, convoco toda a humanidade a falar de abraços e beijos.

Um beijo, segundo os pesquisadores do amor, põe em circulação hormônios que desencadeiam sensações de bem-estar e alegria, mitigando a dor, como uma espécie de morfina.

Não por acaso as mães beijam o “dodói” das criancinhas que tropeçam e caem –  e já se levantam, reanimadas pelo milagre do “beijo”.

O ato de pousar os próprios lábios nos de alguém a quem muito queremos, imprimindo-lhes um movimento de sucção, não é apenas um gesto afetivo: é também um gesto terapêutico.

Segundo os citologistas de plantão, especialistas em pele, o beijo é uma das melhores formas de se evitar as rugas e de se fazer “ginástica facial”, já que põe em movimento nadas menos do que 29 músculos.

Trata-se, portanto, do verdadeiro halterofilismo labial. Ainda no campo dos benefícios estéticos, já está provado que o beijo “emagrece”.

Sim, quem muito beija dificilmente deixará de ser esbelto – pois o beijo obriga o organismo a consumir cerca de 12 calorias por unidade  bem estalada e até 28 calorias se o beijo é daqueles cinematográficos, de desentupir pia.

Quanta energia, quanta vitamina num beijo só! Com tantas propriedades, não há de ter sido por mero acaso que o beijo se tornou o afago mais praticado na história da humanidade.

Dele, já dizia “William”, o poeta de Stratford-on-Avon:
– Um beijo remove montanhas, constrói reinos, dissipa impérios…

E o magnífico poeta negro, o verdadeiro Iluminado,  Cruz e Sousa, um dia suspirou pelo beijo de um amor secreto – uma branca, ebúrnea,  uma “galega” a quem amou platonicamente:
– Beije-me e serei teu príncipe, em noite de plenilúnio…

Claro, não faltariam os “espíritos de porco”, como o poeta espanhol La Serna.
Sobre este nobre carinho, ele estalou os beiços e atirou com desdém:
– Às vezes, o beijo não passa de um chiclete compartilhado…

E daí? – pergunto eu. Se é o chiclete da bem-querença, que mal faz?
Masquemos todos, homens e mulheres, essa doce e reparadora saliva do amor, esses halteres labial que ainda pode salvar a humanidade.

(Crônica publicada originalmente no Diário Catarinense, em 15/4/2010. Reproduzida com a autorização do autor. Imagem de abertura do Pixabay)

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“Querida, querência”, crônica de Sérgio da Costa Ramos – Uma viagem no tempo pela cidade que aniversaria

Querida, querência
Por Sérgio da Costa Ramos

É como se fosse o aniversário de uma filha querida – ou seria de uma mãe, a Ilha-mãe?

A mãe-(f)ilha, talvez, ou, em todo caso, a ilha-mulher muito querida, a quem se ama como “a única”, pois, com tantas curvas e encantos, tantas enseadas e até dois umbigos! – as lagoas do Peri e da Conceição – não há como a anatomia da Ilha deixar de ser sensualmente feminina, com a mais absoluta certeza.

Todo cidadão desta Ilha deve sair hoje de casa com um cravo na lapela, ou uma vela acesa no peito, em homenagem ao aniversário de Floripa e, assim, iluminado pelas ruas e pelas praças, saudar o aniversário desta que é uma das mais belas mulheres urbanas do planeta e, ao mesmo tempo, uma das paisagens naturais mais admiradas pelos cronistas, como Virgílio Várzea, e pelos pintores, como Eduardo Dias.

Cumprimente-se a si mesmo, leitor, e agradeça ao Criador por morar neste berço que Ele desenhou caprichosamente, molhando a ponta do lápis entre os divinos lábios, como se fazia antigamente, quando se queria desenhar ou escrever com carinho, esmero, primor.

Tome umazinha de manhã no Mercado (que deveria abrir o dia inteiro, ou perpetrará sacrilégio neste dia bento), sem esquecer de deixar no solo sagrado da nossa feira popular o “gole do santo”…

É dia de festa para todos, alegria que pinga de todos os poros, seja dos ilhéus da gema, seja dos adventícios. Mas é ainda mais festivo para aqueles íntimos que, um dia, socorreram-se de um carrinho de cavalo e de seu cúmplice boleeiro para uma visita galante ao jardim da namorada, atirando do “coche” um buquê de flores – isto no tempo em que se presenteava a namorada com serenatas e com flores…

O dia é ainda mais festivo para aqueles que, um dia, aspiraram maresia no cais da Rua Antônio Luz, à beira-mar e ao lado do Miramar.

Todas as cervejas ali consumidas eram logo processadas pelo fígado e tinham suas ureias expulsas naquele Castelinho da hoje Casan, que ainda está lá, encalhado e perplexo como um velho galeão-urinol, que se flagrasse encalhado no refluxo da maré.

É ainda mais festivo o dia para quem chupava um “beija-frio” ali pertinho, na Sorveteria do Barão, e, depois, tentava imprimi-lo nos lábios da namorada, uma quadra antes, na sessão vespertina do Imperial, cinema vizinho da Companhia do Cabo Western.

É data cheia para quem pulava o Carnaval ali na Rua João Pinto, no já “veterano” Clube Doze – ou para os foliões etílicos que se esvaíam em “traçados” ali no João Bebe Água, boteco histórico, pai compreensivo de todos os pinguços.

Havia freguês que tomava “porre” de caderno, pra pagar só no fim do mês.

Todos são titulares desta festa e desta “querência”, os mais antigos e os mais novos. Todos o que ajudaram a construir esta escultura à beira-mar, obra de arte que hoje completa 284 (sic) anos de vida, paixão e sorte.

Mas é ainda mais genuína a alegria de quem comeu uma empada de massa podre no Chiquinho, tomou uma Cola-Marte no Bar Rosa, comprou um Correio da Manhã na banca do Beck, cortou o cabelo com o “seu” Mello no Salão Record, almoçou dobradinha no Estrela do Manoel Tourinho e flertou com a mulher, hoje avó, nas barraquinhas do Divino.

Sou da Floripa desse tempo risonho e franco – dir-se-ia, do tempo de amarrar cachorro com linguiça e até político com “mensalão”.

O cachorro respeitava a linguiça e o “representante” era quase incorruptível.

Não quero uma Florianópolis paralítica. Mas também não a aceito degradada. Exijo uma sintonia fina que a modernize sem desfigurar, preserve sem engessar.

Uma Floripa que eu possa reconhecer só pelo tato, debaixo da lingerie urbana, e ainda possa dizer:
Floripa, querida, Floripa, querência.

(Crônica publicada originalmente no Diário Catarinense, em 23/3/2010. Reproduzida com a autorização do autor. Ilustração de Felipe Parucci)

Novas narrativas – No aniversário da Capital, quatro ‘grandes’ da cidade se juntam ao time do Floripa Centro

Neste 23 de março de 2021, aniversário da cidade, o Floripa Centro está lançando uma nova sessão, chamada ‘Narrativas do Centro’.
Nela, serão publicados textos de diversos gêneros, sempre com foco na região central da cidade.

Haverá crônicas de Sérgio da Costa Ramos, contos e cenas urbanas com Norma Bruno, poesias de Chiko Kuneski e fotos de Tasso Scherer.

Assim, todos os finais de semana o leitor do Floripa Centro poderá apreciar as fantásticas produções destes consagrados comunicadores.

Cada um deles terá seu trabalho publicado uma vez por mês.
No ‘lançamento’ do espaço, neste aniversário de Florianópolis, haverá uma obra de cada um dos quatro autores.

 

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Sérgio da Costa Ramos - Minha história

Sérgio da Costa Ramos – Minha história

Nascido em Florianópolis, é jornalista, escritor e crítico literário.
Titular da cadeira 19 da Academia Catarinense de Letras, é autor de doze livros de crônicas.

Durante três décadas escreveu uma crônica diária no Jornal Diário Catarinense.
Atualmente, publica seus textos no Jornal Notícias do Dia.

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Crônicas de Sérgio da Costa Ramos Narrativas do Centro

As emanações vindas do mar no Centro de Floripa

Por Sérgio da Costa Ramos
Há certos aromas que provocam uma comichão de nostalgia. O cheiro de “mar”, por exemplo.
Vinha da Baía Sul e do Miramar, subia a figueira e só se dissolvia lá pelo coreto do Jardim Oliveira Bello, já na ante-sala da Catedral.

O odor que hoje emana de Floripa é o mesmo dióxido de carbono que se desprende de toda a cidade poluída, dominada pelos motores dos bichos sobre rodas.
O cheiro de “bazar marinho” – como se estivéssemos comendo uma ostra pelo cheiro – esvaiu-se por algum desvão do tempo e nunca mais será sentido.

Levaram o nosso mar pra longe e, com ele, a identidade da cidade velha, perfeitamente “respirável”, entre a Conselheiro Mafra (antiga Rua do Príncipe) e a Felipe Schmidt – que um dia se chamou Moinhos de Vento.

No coração da cidade, anos 1950, era possível sentir-se a maresia subindo a praça, como se as ostras da murada do Miramar quisessem se persignar diante da escultura da Madona e do Menino Jesus “fugindo do Egito” no lombo de um burro – emocionante altar da catedral.

Com o Hotel La Porta, inaugurado em 1932, a cidade conheceu o seu primeiro elevador. E o primeiro “bar de hotel”, onde, por alguma licença da imaginação, poderíamos ter flagrado um “vin d’honeur” entre o aviador romancista Saint-Exupéry e a atriz Ingrid Bergman – talvez na pré-estreia de Casablanca, ano de 1942.

Dois anos depois, o aviador se despediria da vida, voando entre a Ilha de Malta e Marselha, na sua última missão sobre as águas do Mediterrâneo, em julho de 1944.

E Ingrid Bergman deixaria de ser a “namoradinha do Mundo” para se transformar na “destruidora de lares” – e na glamurosa amante do invejado diretor Roberto Rosselini.

Começavam a surgir os primeiros prédios “altos” de Floripa. O do Ipase, em 1947. O do Hotel Lux, em 1951. O Palácio das Diretorias, em 1955. O Banco do Comércio, em 1959 – junto com outros dois hotéis, o Oscar e o Querência. Na Felipe Schmidt, florescia um modesto “Empire State” ilhéu, o “Edifício Zahia”…

De todo esse nostálgico décor, restam as sobrancelhas do Cambirela e as cabeleiras louras dos garapuvus em flor.
Resta, enfim, a comichão da nostalgia, em meio ao trânsito engarrafado e os “curativos” aplicados à nossa velha senhora, a ponte Hercílio Luz.

(Crônica publicada originalmente no Diário Catarinense, em 19/01/2019. Reproduzida com autorização do autor).

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