“Querida, querência”, crônica de Sérgio da Costa Ramos – Uma viagem no tempo pela cidade que aniversaria

Compartilhe:

Querida, querência
Por Sérgio da Costa Ramos

É como se fosse o aniversário de uma filha querida – ou seria de uma mãe, a Ilha-mãe?

A mãe-(f)ilha, talvez, ou, em todo caso, a ilha-mulher muito querida, a quem se ama como “a única”, pois, com tantas curvas e encantos, tantas enseadas e até dois umbigos! – as lagoas do Peri e da Conceição – não há como a anatomia da Ilha deixar de ser sensualmente feminina, com a mais absoluta certeza.

Todo cidadão desta Ilha deve sair hoje de casa com um cravo na lapela, ou uma vela acesa no peito, em homenagem ao aniversário de Floripa e, assim, iluminado pelas ruas e pelas praças, saudar o aniversário desta que é uma das mais belas mulheres urbanas do planeta e, ao mesmo tempo, uma das paisagens naturais mais admiradas pelos cronistas, como Virgílio Várzea, e pelos pintores, como Eduardo Dias.

Cumprimente-se a si mesmo, leitor, e agradeça ao Criador por morar neste berço que Ele desenhou caprichosamente, molhando a ponta do lápis entre os divinos lábios, como se fazia antigamente, quando se queria desenhar ou escrever com carinho, esmero, primor.

Tome umazinha de manhã no Mercado (que deveria abrir o dia inteiro, ou perpetrará sacrilégio neste dia bento), sem esquecer de deixar no solo sagrado da nossa feira popular o “gole do santo”…

É dia de festa para todos, alegria que pinga de todos os poros, seja dos ilhéus da gema, seja dos adventícios. Mas é ainda mais festivo para aqueles íntimos que, um dia, socorreram-se de um carrinho de cavalo e de seu cúmplice boleeiro para uma visita galante ao jardim da namorada, atirando do “coche” um buquê de flores – isto no tempo em que se presenteava a namorada com serenatas e com flores…

O dia é ainda mais festivo para aqueles que, um dia, aspiraram maresia no cais da Rua Antônio Luz, à beira-mar e ao lado do Miramar.

Todas as cervejas ali consumidas eram logo processadas pelo fígado e tinham suas ureias expulsas naquele Castelinho da hoje Casan, que ainda está lá, encalhado e perplexo como um velho galeão-urinol, que se flagrasse encalhado no refluxo da maré.

É ainda mais festivo o dia para quem chupava um “beija-frio” ali pertinho, na Sorveteria do Barão, e, depois, tentava imprimi-lo nos lábios da namorada, uma quadra antes, na sessão vespertina do Imperial, cinema vizinho da Companhia do Cabo Western.

É data cheia para quem pulava o Carnaval ali na Rua João Pinto, no já “veterano” Clube Doze – ou para os foliões etílicos que se esvaíam em “traçados” ali no João Bebe Água, boteco histórico, pai compreensivo de todos os pinguços.

Havia freguês que tomava “porre” de caderno, pra pagar só no fim do mês.

Todos são titulares desta festa e desta “querência”, os mais antigos e os mais novos. Todos o que ajudaram a construir esta escultura à beira-mar, obra de arte que hoje completa 284 (sic) anos de vida, paixão e sorte.

Mas é ainda mais genuína a alegria de quem comeu uma empada de massa podre no Chiquinho, tomou uma Cola-Marte no Bar Rosa, comprou um Correio da Manhã na banca do Beck, cortou o cabelo com o “seu” Mello no Salão Record, almoçou dobradinha no Estrela do Manoel Tourinho e flertou com a mulher, hoje avó, nas barraquinhas do Divino.

Sou da Floripa desse tempo risonho e franco – dir-se-ia, do tempo de amarrar cachorro com linguiça e até político com “mensalão”.

O cachorro respeitava a linguiça e o “representante” era quase incorruptível.

Não quero uma Florianópolis paralítica. Mas também não a aceito degradada. Exijo uma sintonia fina que a modernize sem desfigurar, preserve sem engessar.

Uma Floripa que eu possa reconhecer só pelo tato, debaixo da lingerie urbana, e ainda possa dizer:
Floripa, querida, Floripa, querência.

(Crônica publicada originalmente no Diário Catarinense, em 23/3/2010. Reproduzida com a autorização do autor. Ilustração de Felipe Parucci)

Novas narrativas – No aniversário da Capital, quatro ‘grandes’ da cidade se juntam ao time do Floripa Centro

Neste 23 de março de 2021, aniversário da cidade, o Floripa Centro está lançando uma nova sessão, chamada ‘Narrativas do Centro’.
Nela, serão publicados textos de diversos gêneros, sempre com foco na região central da cidade.

Haverá crônicas de Sérgio da Costa Ramos, contos e cenas urbanas com Norma Bruno, poesias de Chiko Kuneski e fotos de Tasso Scherer.

Assim, todos os finais de semana o leitor do Floripa Centro poderá apreciar as fantásticas produções destes consagrados comunicadores.

Cada um deles terá seu trabalho publicado uma vez por mês.
No ‘lançamento’ do espaço, neste aniversário de Florianópolis, haverá uma obra de cada um dos quatro autores.

 

Compartilhe:
0 respostas

Deixe uma resposta

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *