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Diário da quarentena – ‘A pandemia acabou com o conflito de morar num apartamento, sonhando com um sítio’

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Por Ana Luiza Schumacher

Há muitos anos moro num apartamento no Centro.
Sempre sonhei em mudar para uma casa com quintal, jardim e nunca consegui.
E o lockdown pandêmico me encontrou aqui: num apartamento no Centro!

Fazer as pazes com o conflito de estar num lugar, querendo estar noutro, foi a primeira tarefa neste isolamento.
O conforto que sempre me trouxe o poema Ceifeira*, de Fernando Pessoa, agora, precisou ser vivido no coração.
Quer dizer, sentido realmente.
Ou o dilema não seria resolvido, nem haveria o mergulho por inteiro.

E algo aconteceu.
E o conflito se desmanchou na pandemia!

Fico pensando que cada um deve ter tido seu conflito inicial para resolver e poder mergulhar.
Nadar em águas profundas requer liberdade de amarras.

Reconhecimento
É tentador aceitar a sugestão de escrever sobre o que estamos vivendo.
Escreveria sobre introspecção.
E aí, me contradigo, pois, esta se faz no silêncio, e não em meio às sugestões dos muitos textos, vídeos e áudios que abundantemente nos chegam.
O tempo vai passando e o texto se esboçando muito devagar, talvez pela existência da contradição sutil.

Chegamos ao tempo do afrouxamento da reclusão e, com isso, aparece naturalmente a continuidade ou desfecho para o texto curto, decidido com o título de ‘Reconhecimento’.

A palavra sugere um exame para o reconhecimento da transformação que se processou, e segue acontecendo, a partir do isolamento social.
E conta com a arte poética de Fernando Pessoa delimitando o espaço, ao tempo em que amplia infinitamente as possibilidades do acontecer “neste quarto de uma casa”.
E com o texto de Eckhart Tolle conferindo propósito, ao dar o “tom espiritual” ao período que vivemos.

A saída é para dentro
O escritor Eckhart Tolle, na sua obra “Um convite para o despertar”, sugere o mergulho para dentro de si, lembrando o esboço da figura em postura meditativa: “a saída é pra dentro”.

No primeiro livro, “O Poder do Agora”, Tolle relata sua experiência de iluminação súbita e espontânea e do período de maravilhamento que se seguiu, e que acabou por torná-lo um mestre espiritual.
Seu trabalho, desde então, tem sido esclarecer o estado de segurança inabalável e o pleno e pacífico bem-estar.
Ele busca transmiti-lo como algo inerente e acessível a todos os que se disponham a reconhecê-lo em si mesmos.
Transcrevo abaixo o texto **, que permanece como sugestão muito atual.

A transformação pela pandemia
Devemos nos reconhecer novos, no sentido de diferentes, depois desse tempo.
Alguém pode dizer: sempre somos modificados, em qualquer tempo.
E estaria certo. Mas neste tempo que nos tocou viver, reclusos num lockdown de pandemia e conosco mesmos, numa situação tão diferente do que conhecíamos, houve uma intensificação da nossa chance de mudança.

Mudar de acordo com a plataforma não estática do mundo novo que vamos encontrar depois desta primeira etapa. E que vamos seguir construindo e expressando naquilo que nos transformamos e seguiremos nos transformando.

Então cabe um olhar sobre o que percebemos de diferente em nós.
Podemos iniciar este inventário, se já não o fizemos, ainda sós, nos espaços de confinamento ou com os entes que nos acompanharam, em geral, poucos.
Ou observando atentamente nosso comportamento e reações ao nos depararmos com o mundo exterior nessas saídas esporádicas.
Na contemplação sucessiva, se conhecendo e reconhecendo, admirando o resultado a cada etapa, abrimos a possibilidade do viver mais consciente, garantindo a continuidade do propósito maior da nossa vida.

* Ceifeira, de Fernando Pessoa
“Não, não é nesse lago entre rochedos,
Nem nesse extenso e espumeo beira-mar,
Nem da floresta ideal cheia de medos
Que me fito a mim mesmo e vou pensar.

É aqui, neste quarto de uma casa,
Aqui entre paredes sem paisagem,
Que vejo o romantismo, que foi asa
Do que ignorei de mim, seguir viagem.

É em nós que há os lagos todos e as florestas
Se vemos claro no que somos, é
Não porque as ondas quebrem as arestas
Verdes em branco [ . . . ]

** Um convite para o despertar, Eckhart Tolle
Se você não se aprofundou o suficiente, se não encontrou nada além da mente, do pensamento conceitual, então a adversidade, qualquer que seja (neste caso, sabemos o que é), irá consumi-lo.

E mesmo se você não adoecer ou contrair o vírus, o medo o consumirá, pois está consumindo milhões de humanos neste momento.

Se você soubesse quem / o que você é, perceberia que não há nada a temer. Somente se você não se conhece, o medo surge.

Torne-se consciente de si mesmo, não do eu conceitual, não do seu eu pessoal, da sua história, mas tome consciência de si mesmo como presença consciente.

O pensamento não o ajuda aí. O pensamento é um obstáculo. Portanto vá mais fundo que o pensamento e fique completamente acordado e presente, sem atividade mental.

Esse é o começo da realização de sua essência eterna e atemporal. É uma dimensão mais profunda da consciência mais do que aquela com a qual você normalmente se identifica.

Encontre essa base inabalável que está profundamente dentro de você, dentro de todos.
A adversidade é uma oportunidade maravilhosa porque força você a ir mais fundo.

A vida se torna quase insuportável quando você vive apenas na superfície das percepções sensoriais e de sua mente conceitual, e então você ouve as notícias e lê todo tipo de coisa, e todos estão em estado de medo – devido a uma casa construída na areia.

Este é um convite para o despertar para quem você é, porque se não o fizer, sofrerá desnecessariamente. Milhões estão num estado de ansiedade.

Mas use isso como uma chance de despertar. É uma oportunidade de chegar a essa conclusão de que você é muito mais profundo do que conhecia antes.

Você deveria prestar mais atenção a sua própria consciência do que aos noticiários e seja lá o que ouça ou assista. Use esse tempo precioso , ele faz parte do despertar da humanidade.

Os seres humanos não despertam em sua zona de conforto. Eles despertam quando são retirados de sua zona de conforto, quando não aguentam mais o sofrimento ou a infelicidade.

Sinta a vitalidade, tome consciência daquela presença que é inseparável de quem você é. Essa é uma realização incrível!

Há mais para você do que a realização pessoal! Essa presença é mais profunda que a pessoa. Você precisava da adversidade para encontrá-la ou aprofundar a realização.

Há um ditado que diz: “Quando o ego chora pelo que perdeu, o espírito se alegra com o que encontrou.”

O que parece ruim e muito negativo na superfície, como um obstáculo ao bem estar da humanidade, do ponto de vista convencional, na verdade tem uma função essencial.

Portanto esse é um momento de grandes oportunidades. Use-o. Não o desperdice. Não se perca na mente. Não se perca no medo.
Esteja enraizado nesta rocha que é a sua identidade essencial.

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