Uma antiga história de amor no Piano Bar do Hotel Royal, no Centro – Um conto de Norma Bruno
Hotel Royal*
Por Norma Bruno
Alfredo amanhecera com uma emoção sombria, talvez pelo acúmulo das três noites mal dormidas.
Por mais que tentasse, não conseguira explicação para a angústia que o acompanhava nos últimos dias, até que abriu o jornal O Estado naquela manhã.
Abandonando um café pela metade, dirigiu-se ao seu quarto de viúvo. Passou o dia deitado, olhando o teto. No fim da tarde tomou um banho demorado e vestiu-se a caráter, porque a situação o exigia. Na saída rasgou a página do jornal e guardou-a, cuidadosamente dobrada, no bolso do paletó.
Ganhou a rua. Mal deu os primeiros passos e avistou-a a de pleno. Ela caminhou em sua direção, mas não o viu, passando ao largo. Tinha no rosto um meio-sorriso, como se pensasse uma saliência. Ele se voltou e ficou a observá-la, até que ela sumiu, dobrando a rua. Teria vinte anos, um pouco mais, talvez. Nunca mais a encontrou, até que, para sua surpresa, ela veio morar na vizinhança.
O encontro diário era inevitável, a casa da moça colada à sua. Bastava ir ao quintal ou fazer alguma volta na rua para vê-la entrando e saindo de casa ou avistá-la em movimento pela sala, a visão favorecida pela janela sem cortina e o muro baixo.
A possibilidade do encontro no portão o transformou em pontualíssimo, uma qualidade insuspeitada por quem o conhecia.
Com o tempo soube que trabalhava no Hotel Royal e que era noiva de um piloto da Cruzeiro do Sul, que a visitava quando permitia a escala do voo, já que residia no Rio de Janeiro. Desse dia em diante passou a frequentar o Piano Bar do hotel apenas para vê-la.
Na entrada, a menos que ela estivesse ocupada, comentava alguma amenidade ou cumprimentava-a de longe, seguindo para o salão.
Ocupava sempre a mesma mesa, próxima à janela de modo a observá-la discretamente, enquanto ela atendia os hóspedes no balcão. No início do mês dava-se ao luxo de pedir um ‘filé com fritas’; da outra metade em diante um drinque – Hi-fi -, atento ao som do piano, magistralmente tocado por Mirandinha, o pianista-mor da cidade, que abrilhantava o fim de tarde dos hóspedes do Hotel Royal.
Iniciava com uma seleção consagrada do blues e do jazz, depois abria espaço para os pedidos que incluía os clássicos americanos – New York, New York; Smoked get in your yes; Only you -, e também muita Bossa Nova, o ritmo que vinha revolucionando a música brasileira.
De quando em quando Alfredo arriscava um pedido, sempre a mesma música, um recado sutil para Carmélia, mais ia embora antes dela para não denunciar o interesse. Cumprimentava-a de longe e ia para casa remoem orando sua imagem, o cigarro apagado entre os dedos e o som seco do Zippo abrino e fechando, marcando seus passos. Sua lembrança o assaltava diversas vezes durante o dia.
Certa noite, ao sair, percebeu a ausência de Carmélia, por isso ficou surpreso quando a encontrou parada, a silhueta iluminada pelo imenso lustre de cristal, no saguão do hotel. Mais surpreso ficou quando ela disse que estava à sua espera e, com uma graça toda feminina, confessou que mentira ao gerente, pedindo para sair mais cedo, alegando dor de cabeça.
Ele insistiu que tomassem um carro de praça até em casa, mas ela disse que preferia ir caminhando, se ele não se importasse. Lado a lado, passos contidos para esticar o tempo, subiram a Praça XV passando em frente ao prédio do Banco INCO. Do andar superior ainda sobrevinha, como uma alucinação, uma voz que imitava o inigualável Cauby Peixoto no extinto e popularíssimo programa de auditório da Rádio Diário da Manhã.
Subindo a Rua dos Ilhéus, passaram pelo Teatro Álvaro de Carvalho, cortando a Praça Pereira Oliveira em direção à Chácara da Espanha. Antes, demoraram-se diante do cartaz que anunciava para breve um espetáculo com a Companhia de Teatro Procópio Ferreira. Caminhavam vagarosamente, conversando sobre um tema qualquer, o assunto um mero pretexto para os entreolhares sorridentes, um tocando de leve o braço do outro com a desculpa de enfatizar o que ia ser dito. (Ela não mencionou o nome do noivo, nem ele o da noiva, apesar das alianças).
Por fim chegaram ao seu destino. Ainda tinham assunto, por isso quedaram-se um pouco mais no portão, sob a luz de um poste da ELFFA, a Empresa de Luz e Força da Cidade. Mas a conversa ficou para outro dia, pois a mãe, zelosa da reputação da filha, gritara lá de dentro para que ela entrasse. Três vezes.
Os encontros noturnos tornaram-se frequentes, só que agora era ele quem esperava. Conversavam e riam à toa pelas ruas, entretidos, absortos, apartados do mundo. Quando chovia, tomavam um carro-de-cavalo. Falavam sobre os filmes em cartaz no Cine São José, no Cine Roxy, no Cine Ritz, recomendavam-se músicas, compartilhavam passagens da infância¸ falavam do trabalho e dos sonhos, descobrindo e construindo afinidades.
Alfredo fantasiava uma liberdade inexistente, a ponto de convidá-la para a tradicional Soirée de Inverno do Lira Tênis Clube, logo ele que nem sabia dançar. A mãe disse que não ficava bem.
Numa manhã de sábado a realidade bateu palmas no portão da casa, ele ouviu. Era Carmélia, com um envelope não mão.
– É dele, ela disse. – Está vindo me buscar…
Alfredo nada disse, apenas baixou o olhar, o silêncio erguendo um mundo entre os dois. Dias depois ele percebeu o pequeno envelope introduzido por baixio da porta da sala de visitas.
Reconheceu a letra feminina que dizia: – Parto amanhã. O avião sai às 16 hs.
Dava para ouvir o alvoroço da mãe e do irmão mais velho na despedida de Carmélia. Contrariando os antigos planos, casaria por lá. Alfredo ficou atrás da porta, à escuta, a mão sobre a maçaneta, mas o gesto não se cumpriu.
Muitos anos se passaram desde aquele dia. Ela nunca retornou à cidade. A operação na vesícula, suas pequenas conquistas, as notícias chegavam através do irmão mais velho, que agora cuidava da mãe, a saúde cada dia mais frágil.
Alfredo vibrou ao saber que Carmélia, afinal, abriu o tão sonhado ateliê de costura e que, ao contrário dele, tivera muitos filhos, naturais e adotivos; sabia seus nomes e datas de nascimento. Que enviuvou ainda jovem. Anos depois ele também enviuvou; então decidiu procurá-la. Por ele, aquela história recomeçaria do ponto exato em que parou.
Decidido enviou-lhe uma carta, propondo um encontro para breve. A carta dizia: se ela não o tivesse esquecido, que o encontrasse dia tal, a tal hora, em tal lugar.
Alfredo chegou cedo e saiu muito depois da hora marcada, mas ela não apareceu. Antes de retornar à Florianópolis, deu o endereço ao taxista, pedindo que parasse um instante na porta do prédio em que ela morava.
Por algum tempo ficou a observar as cortinas brancas voejando pela grande janela entreaberta. Relembrou o pedido de um gesto que ela fizera ao partir – saber que aquela seria a última vez que a via teria mudado alguma coisa? Nesse instante alguém cerrou as janelas, devolvendo-o à realidade. Voltou à Ilha e à sua previsível vida de viúvo e aposentado.
Da viagem ao Rio até a manhã daquele dia, passaram exatos sete anos sem uma única notícia de Carmélia. Já não havia tempo para recomeços, advertia a nota do jornal. Daí o olhar perdido, o café abandonado pela metade, o banho demorado, a melhor roupa e o andar lento pelas ruas assaltado pela lembrança do momento em que a viu pela primeira vez, há mais de quarenta anos. Quando se deu conta, estava diante do Hotel Royal. Decidiu entrar, dirigindo-se ao Piano Bar (isso ainda existe?).
No salão totalmente remodelado, um grupo de executivos comemorava alguma coisa num happy-hour barulhento. Alfredo aguardou que vagasse a mesa próxima à janela e então sentou, como o fazia, de modo a observá-la atendendo os hóspedes.
Chamou o garçom e pediu um Hi-fi, distraído do seu anacronismo.
O rapaz, bem treinado, esclareceu que a bebida não constava no cardápio, mas que o bar tinha uma excelente carta de vinhos nacionais e importados, além de cervejas artesanais, uísque, espumantes, vodcas, tequilas… Ele fez que não, algo irritado, voltando-se para a janela onde as luzes começavam a destacar a Ponte Hercílio Luz contra o céu escuro.
Observando que já não se via o facho de luz azul do aeroporto percorrendo o céu da cidade, foi despertado pela música. O som não vinha do piano, como outrora, mas de um desses modernos equipamentos eletrônicos que desempregam uma orquestra inteira.
O cantor era competente, ainda que o repertório não fosse do seu agrado. Com certa dificuldade, Alfredo levantou e, dirigindo-se ao músico, pediu: – Play it again, Sam?
Hamilton já estava acostumado. Depois do terceiro copo todo pianista vira Sam aos olhos de um freguês apaixonado.
Esquecendo o velho e remetendo às suas próprias lembranças, no fundo ele ansiava por esse momento, Sam dedilhou com maestria: Eu sei que vou te amar…
Da rua o que se ouvia era uma linda canção de amor, entrecortada pelo tilintar dos pratos e talheres sendo recolhidos da mesa do Piano Bar.
* Este conto faz parte do livro “Cenas urbanas e outras nem tanto” (Norma Bruno, Bernúncia Editora, 2012)
— Conheça a trajetória de Norma Bruno
Novas narrativas – No aniversário da Capital, quatro ‘grandes’ da cidade se juntam ao time do Floripa Centro
Neste 23 de março de 2021, aniversário da cidade, o Floripa Centro está lançando uma nova sessão, chamada ‘Narrativas do Centro’.
Nela, serão publicados textos de diversos gêneros, sempre com foco na região central da cidade.
Haverá crônicas de Sérgio da Costa Ramos, contos e cenas urbanas com Norma Bruno, poesias de Chiko Kuneski e fotos de Tasso Scherer.
Assim, todos os finais de semana o leitor do Floripa Centro poderá apreciar as fantásticas produções destes consagrados comunicadores.
Cada um deles terá seu trabalho publicado uma vez por mês.
No ‘lançamento’ do espaço, neste aniversário de Florianópolis, haverá uma obra de cada um dos quatro autores.
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