Náufragos dando volta ao mundo – Em 1803, Desterro recebeu os primeiros japoneses a pisar no Brasil

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Por Billy Culleton
Na “Ilha de Sankateríni” muitos homens e mulheres andavam descalços e sem roupas.
Havia uma imensa quantidade de árvores nos morros, com macacos de rabos compridos.
As casas eram de pedra, com telhados de madeira de cerejeira, rachada ao meio.

Esta descrição da Vila Nossa Senhora do Desterro foi feita por quatro japoneses que aportaram no Forte Santana, no Centro da atual Florianópolis, em 1803.

Eles faziam parte da tripulação de um navio russo que estava fazendo a volta ao mundo.
A viagem do barco Nadezhda foi a primeira circunavegação russa do mundo e os marinheiros japoneses, os primeiros daquele país a fazer a volta na Terra.

Navio Nadezhda dando a volta ao mundo (Wikipedia)

Por que japoneses em navio russo?
Em 1793, o navio de carga japonês chamado ‘Wakamiya-maru’ foi atingido por uma tempestade e, à deriva, acabou chegando a uma ilha do Alaska (Unalaska), então território da Rússia.

O barco japonês Wakamiya-maru que naufragou perto do Alaska (Acervo site Nippo Brasilia)

Os sobreviventes foram levados para outra cidade russa, Irkutsk.

Depois de sete anos surgiu a oportunidade de retornar ao Japão: para isso, deveriam embarcar num navio que iria tentar dar a volta ao mundo e, no final da viagem, chegaria no pais nipônico.

Partida do navio completa 218 anos neste sábado, 7
Assim, em 7 de agosto de 1803, os aventureiros partiram do porto de Kronstadt e passaram por Dinamarca, Inglaterra e Espanha.

Da Europa atravessaram o Oceano Atlántico direto até a Ilha de Santa Catarina, onde chegaram em 22 de dezembro daquele ano.

Após ficarem 71 dias em Desterro, continuaram a viagem até desembarcarem em Nagasaki, em 6 de setembro de 1804.

Mapa mostra o percurso feito pelos aventureiros: Desterro foi o único local da América onde pararam (Wikipedia)

Homenagem do embaixador japonês
No dia 6 de agosto de 2021, o embaixador do Japão no Brasil, Akira Yamada, esteve em Florianópolis para conferir obras da Casan financiadas com verbas daquele país.

Embaixador frente à placa no Forte Santana (Divulgação Secom/SC)

Ele aproveitou para visitar o Forte de Santana, embaixo da Ponte Hercílio Luz, local do desembarque dos primeiros japoneses em território brasileiro.

Ali, em 2013, foi instalada uma placa que lembra a façanha e enterrada uma cápsula do tempo.

Detalhamento da placa no Forte (Billy Culleton)

Confira trechos do diário descrevendo a Ilha
Os japoneses mantinham um diário onde anotavam os principais acontecimentos e as curiosidades descobertas durante a viagem.

Confira alguns trechos sobre a Vila Nossa Senhora do Desterro, do artigo “Informações exóticas ouvidas na viagem ao redor do mundo” publicado na “Revista Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir./UFRGS”.

Pareceu-nos que esse local é um dos maiores portos existentes na América do Sul.
Disseram-nos que o território que está sob seu governo também se chama Ecatirina (num dos mapas dos aventureiros há menção á ‘Ilha de Sankateríni’).
Ou seja, parece-me que ele é um dos portos do Buracilí (Brasil)”.

“O porto é grande mas forma uma baía. É muito rasa, de modo que os navios grandes não podem se aproximar da costa.”

“No porto, havia dois navios ingleses e mais outros dois navios estrangeiros. Na praia, viam-se canhões para guardar a costa.”

“Os barcos dos nativos eram finos e compridos como se fossem as folhas de bambu. Seu fundo consistia em uma tábua pregada num tronco de árvore partido ao melo.”

“Ouvimos dizer que este lugar é muito quente o ano todo e não conhece o inverno”.

“Os nativos tinham peles escuras. Tanto homens como as mulheres andavam descalços e sem roupas e não tinham tatuagens. As crianças também eram pretas e andavam completamente nuas”.

“Os dentes, tanto dos homens como os das mulheres, eram pretos e estavam sempre mascando uma coisa parecida com resina de pinheiro. Parecia que não paravam de mexerem a boca”.

“Entrando território adentro a partir do porto, havia um lugar com aproximadamente mil casas (Centro da cidade)”.

“Existia um templo (Catedral). Era uma construção que possuía um objeto em forma de cruz similar ao que tem no telhado do templo russo. Observando a maneira de rezar, constatamos que parecia com a nossa reza, a dos japoneses”.

“As casas eram feitas de pedras e seus telhados eram de madeira de cerejeira rachada ao meio. Vendo de longe, assemelhavam-se a casas com telhas”.

“Preparam farinha de milho, a colocam na água quente, fazendo uma espécie de cola (polenta) e a comem”.

“Havia imensa quantidade de árvores nos morros. Entre as árvores familiares havia bergamota e laranja. Bem no interior, via-se uma montanha alta. Disseram-nos que é muito difícil de escalar”.

“Compramos muitos produtos locais para o navio: couves, nabos, rábanos, melões chineses, melões, melancias, abóboras, pepinos, uvas, pimenta, laranjas, nozes, maçãs, cana-de açúcar e açúcar branco”.

“Havia uma fruta muito grande (côco verde). A casca externa era grossa. Ao removê-la, via-se a casca interna muito dura, parte dela parecida com o rosto de uma pessoa. O seu interior estava cheio de carne oleosa, doce como nozes.
Os negros colocavam essas frutas num recipiente e vinham a nado até o navio, para vendê-las. Nós também as compramos. Ao experimentarmos, sentimos o frescor na boca e esquecemos o calor intenso, de modo que nós as compramos e as comemos várias vezes”.

“Há passarinhos de cor muito bela, de cor azul e com bico e orifícios nasais vermelhos”.

“Havia macacos de rabos compridos. Criávamos um no navio, mas morreu durante a viagem”.

“Havia um animal cujos pêlos eram de cor cinza esbranquiçada, com um focinho comprido e rabo listrado (gamba?). Seu tamanho era pequeno, um animal fácil de ser domesticado. Exalava cheiro ruim por todo o corpo. Compramos quatro deles para criá-los a bordo do navio”.

(Esta reportagem foi feita a partir de pesquisas no site Nippo Brasilia, Revista Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir./UFRGS e Associação Wakamiya-maru Ilha Santa Catarina. A imagem de abertura é do Wikipedia e mostra o Harbour of St Paul on the Island of Cadiack, Russian sloop-of-war Neva)

 

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