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O dia em que consegui cortar o dedo de um morador de rua do Centro de Florianópolis

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Meu amigo Waldir voltou a Florianópolis!
Depois de dez anos perambulando ‘pelo mundo’, está novamente andando pelas ruas da cidade, onde este paulista passou a maior parte de seus 67 anos.
Recentemente,  o encontrei caminhando no Centro e nos demos um caloroso abraço.

Há uma década, lutei para que cortassem o dedo anelar de sua mão direita.

Confira abaixo, a reportagem publicada na revista catarinense Pobres & Nojentas, em 2010:

Os dedos vão, os anéis ficam
Texto e fotos: Billy Culleton

Esta é uma história real sem final feliz. Waldir perdeu a esperança há mais de duas décadas. Recentemente, foi um dedo.
No último estágio da dignidade humana, Waldir percorre as ruas centrais de Florianópolis como um bicho.
Diz frases desconexas e revira o lixo buscando algo para comer.

Nunca pediu qualquer ajuda e não aceita dinheiro.
Decidiu ficar absolutamente fora do sistema. Ou teria sido a vida que o arrastou para isso?

Há três meses a sua mão direita está imóvel por uma infecção no dedo anelar.
Num lapso de vaidade, para se enfeitar, colocou como aliança um lacre de ferro, redondo, similar àqueles usados para apertar a mangueira do botijão de gás.
Não conseguiu mais tirar. Quanto mais mexia, mais apertava.
A circulação ficou prejudicada e o dedo, imprestável.
A cada tentativa minha de levá-lo para atendimento médico (foram três, nos últimos meses), ele respondia, em meio a frases sem sentido, que não iria, pois tinha “muitos compromissos”. E saia andando, com seu fedido saco nas costas.

No final da tarde de uma sexta-feira (20/11/2009), enquanto ele perambulava pela Praça XV, o abordei para questionar sobre o dedo.
– “Vamos tratar disso? Vamos para o hospital?”, insisti, sem muitas esperanças.
Embalado pelo álcool, raríssimas vezes presente no seu cotidiano, ele aceitou.

Caminhamos juntos por 12 quadras, sob os olhares curiosos dos transeuntes, que questionariam o que estaria fazendo um homem comum, bem vestido, junto a uma figura barbuda, com terrível odor e que se deslocava em zigue-zague pelas calçadas.
Eu, incrédulo, temia que a qualquer momento ele desistisse da empreitada.
– “Você vai ficar comigo, né?”, repetia ele, na tentativa de confirmar a promessa recebida para ir até a Emergência do Hospital Celso Ramos.

“Vão atorar a minha mão!”
Dentro do hospital, Waldir atendia aos comandos curtos e objetivos do seu acompanhante para ficar sentado, quieto, na sala de espera, ou para se dirigir até o consultório médico.

Os profissionais da Medicina ficavam apavorados ao olhar para aquela mão com um dedo inflamado e infeccionado, esgoelado por um círculo de metal enferrujado.
-“Vamos ter que amputar”, se limitavam a diagnosticar.
Antes disso, um raio-x. Na sala, a atendente pede ao homem mudo e fétido para colocar a mão em cima de uma estrutura de ferro para fazer a placa.
– “Vão atorar a minha mão, quero sair daqui!”, gritou Waldir, sendo acalmado rapidamente, com explicações sobre a ‘foto’ que seria feita.
Sozinho, na sala escura, ele voltou a se impacientar com os estalos secos da velha máquina de raio-x, que dava motivos para o paciente achar que algo de muito ruim poderia estar por vir.
Porém, ele ‘sobreviveu’.

Foram horas de argumentação para que os médicos aceitassem fazer a cirurgia naquela noite e não na “próxima semana”, com horário marcado e tudo.
O meu principal argumento era que o morador de rua jamais voltaria ‘por conta’ e que a infecção tomaria proporções que significariam uma condena à morte.
O próprio Waldir chegou a pensar em desistir, para alívio dos médicos.

Mas dei um ultimato:
– “Esta é uma oportunidade única. Você sabe que não vai voltar. Se continuar assim, nas ruas, vai morrer”, afirmei, em tom ameaçador, o que fez ele voltar atrás e aceitar o inevitável.

Rio de água preta
Após a confirmação da internação, o mandaram tomar um banho, algo que ficava evidente que não fazia há muitos anos.
No banheiro, ele iniciou o tira-puxa para se desfazer das roupas encardidas. As velhas e folgadas botinas saíram com facilidade, mas os dois pares de meias pretos – e que alguma vez foram brancos – estavam colados à pele.
Só rasgando para sair. – “Que catinga, né?”, disse ele, sorrindo, num lampejo de lucidez.
Ficou 15 minutos embaixo do chuveiro, enquanto um líquido marrom escorria por seus pés.
Se deliciava com aquele jato, enquanto parecia acariciar fervorosamente a água, passando as mãos pelo rosto barbudo e, periodicamente, suspirando um longo ‘aaah!!” de satisfação.
Parecia com saudades daqueles momentos, que não experimentava desde o século passado.
As unhas dos pés, pretas, faziam uma curva de três centímetros.
Após o banho, ele insistiu em procurar uma tesourinha que dizia ter dentro de seu pesado saco, cheio de ‘coisinhas’.
– “É para cortar essas unhas, se não o que vão pensar?”, justificou, ao longo dos cinco minutos que demorou para achar a velha ferramenta que o deixaria um pouco mais humano.

Já com roupas novas oferecidas pelo hospital, voltou à sala de espera, onde lhe foi colocado o soro.
Pensativo, se limitava a dar alguns sorrisos.
Até que num certo momento, cabisbaixo, começou a chorar, talvez lamentando seu futuro com nove dedos.

– “Tens aqui ao teu lado um companheiro que vai te acompanhar em tudo. Aqui vai ser o melhor lugar para resolver este problema”.
Ele recebeu o consolo, em silêncio, sentindo no seu ombro a mão do amigo, que em alguns momentos parecia seu algoz.

Após ser internado formalmente, foi acomodado numa maca no corredor do hospital.
A cirurgia para amputação do dedo ocorreu com sucesso na manhã de sábado.
Depois ficou internado numa sala com outros quatro pacientes.

A ressocialização pelo carinho
Nos primeiros dois dias manteve total silêncio e negou-se a comer ou beber, apesar da insistência das enfermeiras.
Tentou fugir do hospital duas vezes.
Depois desse tempo de luto e resistência, iniciou uma lenta socialização, aceitando se alimentar e começando a se comunicar monossilabicamente.

A inédita atenção recebida, incluindo uma enfermeira que raspou completamente a sua barba, melhorou enormemente a sua auto-estima e fez com que começasse a planejar um futuro diferente.
-“Vou arrumar um emprego e arrumar os dentes”, dizia, referindo-se ao completo vazio na parte de cima da boca.
Mas a aparente lucidez se desconstruía na sequência com afirmações como: “hoje te vi na televisão. Em qual time que você é goleiro?” ou “meus amigos têm campo na Iugoslávia…”.
Um Pai Nosso rezado ao final de cada visita parecia aliviá-lo e lhe dar força.

Pensão, nem pensar
Sem parentes ou amigos à disposição, a sua companhia diária se limitava àquele que o tinha levado ao hospital e que tentava ajudá-lo a encontrar um local para ficar após a alta hospitalar.

O poder público não poderia acolhê-lo porque Waldir tem 56 anos, quatro a menos que o mínimo permitido para ser internado num asilo, por exemplo.
Embora, pelo seu aspecto e sem documentos, ninguém acreditaria que tivesse menos que seis décadas.

Uma alternativa era uma pensão, num hotel econômico no Estreito, parte continental de Florianópolis.
Por R$ 230 por mês teria um quarto com cama e pia, além de banheiro e cozinha coletiva.
Pelo menos, um lugar para se recuperar nas primeiras semanas após sair do hospital.

Três dias antes da alta hospitalar, ao ouvir a proposta da pensão, Waldir ficou em silêncio e disse:
– “Não posso ir para o Estreito. Me disseram para nunca mais ir pra lá que estão me esperando”.
– “Quem? Por que?”
– “Eles, os caras…”.
– “Onde então, em que lugar?”
– “Não precisa lugar nenhum, eu me viro”.

A decepção tomou conta de mim, mas lembrei mais uma vez que não se pode mudar alguém por força externa.
Após 10 dias internado, já sem perigo de infecção, ele saiu do hospital absolutamente recuperado, com apenas uma vendagem na mão.

Na segunda-feira de manhã, fui buscá-lo para ter a alta.
Após assinar os documentos e agradecer a atenção dispensada ao Waldir, nos retiramos.
Eu emocionado, enquanto ele, cabisbaixo, se limitou a dizer um tímido e seco: “Chau, pessoal”.

Os colegas de quarto e funcionários foram efusivos na despedida, mas não obtiveram retorno daquele que voltaria para seu mundo na rua.

Dentro do carro, mais uma tentativa.
– “Não quer ver a pensão?”
– “Pode ser”.
Lá fomos nós. Há mais de duas décadas que ele não andava de carro.
Ao atravessar a Ponte Colombo Salles, Waldir parecia em êxtase.
– “Que legal”, limitou-se a dizer. Chegando na frente do hotel, ele disse que não precisava nem descer, não queria.
– “Algum outro lugar?”
– “Não, me deixa no matagal”.

Sem alternativa, o deixei no lugar combinado e dei uns trocados.
Despedimos-nos com um abraço emocionado que somente eu dei, já que ele o recebeu com os braços abaixados.
– “Tchau, Waldir, se cuida e se precisar de alguma coisa me procura!”, disse, sabendo que jamais o faria.
Ele atravessou a rua e se perdeu no meio do mato.
O homem da toca
Dez dias se passaram e ao não encontrar o Waldir pelas ruas decidi buscá-lo.
Fui até o grande matagal para ver se encontrava o lugar onde se ‘escondia’.
Após 10 minutos de busca, subi num morrinho e vi ao longe um amontoado de pertences.
– “Te encontrei”, pensei, feliz.

Corri entusiasmado.
Ao chegar ao local, era um amontoado de coisas cobertas por plástico, amarrado com cordas, de 40 cm de altura e dois metros de extensão.
– “Aqui é onde Waldir guarda as suas coisas…”.
Olho, investigo, pesquiso nas redondezas. “Será que está por aqui?”
– “Waldir!”, grito. Nada.
Decidi deixar um bilhete para que soubesse que tinha ido procurá-lo.
Escrevo num papelão: “Olá, Waldir. Como está esse dedo? Abraço do teu amigo, B”.
Para não ser levada pelo vento, decidi colocar a mensagem sob uma das cordas que amarravam os pertences.
Nesse momento, um repentino rosno vindo de dentro do amontoado de papelões, quase me fez cair duro de susto.
– “O que é…”
– “Waldir?”, esbocei dizer. – “É você?”
– “Eh…”
– “Sai pra fora, vim te visitar”.
Não dava para acreditar que daí de dentro pudesse sair um ser humano.
Porém, após alguns minutos de insistência surgiu de uma pequena abertura um Waldir magro e barbudo, que me recebeu sem muita animação.
O amontoado de entulho encobria uma toca que se estendia por 30 centímetros abaixo da terra, possibilitando que uma pessoa ficasse deitada dentro.

A contragosto, contou que desde a saída do hospital havia ficado na sua toca e não tinha comido desde então.
– “Você está trabalhando como guarda, aqui?”, questionou várias vezes.
– “Que guarda nada, sou o teu amigo, rapaz!”, o repreendia, na tentativa de tirá-lo da paranoia, desta vez justificada, já que ele não poderia estar ‘habitando’ nesse lugar público.

Perguntei se aceitaria que fosse buscar comida para ele. Consentiu.
Fui no mercado e comprei todo tipo de mantimentos que não precisassem de refrigerador.
Sucos, isotônicos, embutidos, bolachas e sopas instantâneas, além de um sabonete.

Quando voltei com o ‘rancho’, ele, que prometera me esperar, já não estava mais.
Deixei as coisas e aproveitei para investigar como era a toca por dentro. Uns cobertores, garrafas e pequenas ninharias, que imaginei serviriam de talismã para ele.

Decidi deixar o Waldir em paz e lançar um apelo: autoridades, por favor, não façam nada. Ele não quer. Temo que a única coisa que poderão fazer é tirá-lo do lugar proibido em que ele decidiu morar há quase uma década, sem nunca incomodar ninguém.

Fica com Deus, Waldir! É Ele quem te acompanha, protege e consola, coisa que os humanos não conseguimos fazer!

(Esta reportagem recebeu o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, da OAB/RS, concedido em Porto Alegre, em 10 de dezembro de 2010).


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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