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Diário da Quarentena – Pai idoso e com demência, trabalho remoto e confusão em tempo de pandemia

Por Elaine Tavares
Quando comecei no Jornalismo não tinha esse lance de salinha e computador.
Não. As salas eram amplas e todos trabalhavam juntos.
O ato da escrita, da construção da notícia, tinha de ser feito em meio ao barulho das vozes, da máquina de escrever, do telex, dos telefones tocando.
Uma balbúrdia.

A reportagem de televisão era ainda muito pior. Terminava as entrevistas e tinha de escrever o texto do off no joelho, sentada num meio fio ou dentro do carro, porque o material tinha de chegar semi-montado na redação.
Ali aprendi o dom da síntese e essa misteriosa capacidade de entrar dentro de uma imaginária bolha silenciosa em meio ao caos.
Talvez por isso que agora, trabalhando em casa, na pandemia, os textos consigam sair de alguma forma. A balbúrdia é grande.
Tenho o pai, com demência, que me exige demais, cachorros, gatos, quintal, e tudo gira em torno de mim sempre ao mesmo tempo.
Basta que eu me organize, na mesa da cozinha, e abra o computador, para tudo começar. O pai gruda em mim, desde o amanhecer até a hora de dormir.
Não há folga, e ele mesmo não descansa.

Desde que acorda, até à noite, fica andando, mexericando nas coisas.
Então, escrevo uma linha e saio à porta para ver se ele não se enredou em algum galho no quintal.
Escrevo outro parágrafo e lá vou tirar das mãos dele os meus ‘recuerdos’ de viagens que ficam no armarinho da sala.
Já quase não há um inteiro. Ou ele já quebrou a cabeça, ou a pata, ou o rabo.
As lembranças têm mesmo de ficar só na memória.

Também é preciso vigiar para ver quando ele faz xixi ou cocô, pois há que entrar em campo com toda a parafernália da limpeza.
Tenho pelo menos umas quatro toalhas e 12 panos de chão que uso diariamente nessa tarefa. E todos precisam ser usados e lavados a cada tanto.
Também há que ficar de olho para ver se ele não come demais, pois como não se lembra do que fez há um minuto, ele assalta a fruteira dezenas de vezes, podendo, às vezes, comer frutas demais.

Também gosta de fuçar nos sacos de pão e faz uma bagunça danada. Deus o livre que eu diga alguma coisa.
Vira no Jiraya!
Há que deixar ele no seu mexe-mexe. Só que isso dá um trabalho danado e concentrar em um tema é quase impossível. Como ele não dorme de tarde, não há descanso.
Se tenho alguma reunião de trabalho, feita pelo computador, ele fica parado na minha frente querendo que eu pare de falar com as outras pessoas e fale só com ele.
Ciumento que só.

E se estou participando de alguma atividade extra, como uma conferência ou uma entrevista, tenho de fugir e me entocar no quarto para que ele não interrompa, brabo.
E, mesmo escondida, fico saindo de quando em quando para dar uma espiada. Raramente consigo me concentrar na coisa em si. É extraordinário que consiga concatenar ideias.

Quando o dia vai terminando vem a novela do “eu quero ir embora”.
Ele fica na porta me chamando: vamos, vamos. E nessa desamarração eu levo pelo menos uma hora e meia.
Aí já é hora do jantar.
Toca arrumar a comida e cuidar para ver se não está fazendo estripulia com a janta. Não dá para descuidar.
Depois, quando tudo acaba, volto outra vez para o computador ver se consigo finalizar algo.

Ele fica sentado ao meu lado ouvindo o Programa do Rolando Boldrin, e a cada minuto me convoca para fazer um comentário ou qualquer outra coisa incompreensível.
Nessa hora já estou em exaustão, mas ainda arrisco mais um pouquinho de trabalho. O que é automático sai tranquilo, mas pensar exige mais.
Ler, então, é uma odisseia.

Com muito custo o convenço a ir ver a novela. Ele vai, mas fica indo e vindo, cobrando atenção.
O máximo de tempo que consigo é uns 15 minutos e aí tenho de acelerar para poder encerrar algum tópico ou parágrafo.
A parada é dura.

Lá pelas nove horas da noite ele começa a demonstrar cansaço e o coloco pra dormir.
Ele deita e ronca. Mas aí eu mesma já não tenho mais qualquer fatia de energia.
Toca-me a desabar na cama e dormir também, já que preciso aproveitar para descansar quando ele mesmo dorme.

E assim lá se vai mais um dia na pandemia, como se estivesse diariamente girando dentro de um furacão.
A sorte é que, de alguma forma, sempre vivi assim, ainda que em menor medida.
Por isso, espero sair viva!

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Agendas Diário da Quarentena Narrativas do Centro

Diário da quarentena – ‘A pandemia acabou com o conflito de morar num apartamento, sonhando com um sítio’

Por Ana Luiza Schumacher

Há muitos anos moro num apartamento no Centro.
Sempre sonhei em mudar para uma casa com quintal, jardim e nunca consegui.
E o lockdown pandêmico me encontrou aqui: num apartamento no Centro!

Fazer as pazes com o conflito de estar num lugar, querendo estar noutro, foi a primeira tarefa neste isolamento.
O conforto que sempre me trouxe o poema Ceifeira*, de Fernando Pessoa, agora, precisou ser vivido no coração.
Quer dizer, sentido realmente.
Ou o dilema não seria resolvido, nem haveria o mergulho por inteiro.

E algo aconteceu.
E o conflito se desmanchou na pandemia!

Fico pensando que cada um deve ter tido seu conflito inicial para resolver e poder mergulhar.
Nadar em águas profundas requer liberdade de amarras.

Reconhecimento
É tentador aceitar a sugestão de escrever sobre o que estamos vivendo.
Escreveria sobre introspecção.
E aí, me contradigo, pois, esta se faz no silêncio, e não em meio às sugestões dos muitos textos, vídeos e áudios que abundantemente nos chegam.
O tempo vai passando e o texto se esboçando muito devagar, talvez pela existência da contradição sutil.

Chegamos ao tempo do afrouxamento da reclusão e, com isso, aparece naturalmente a continuidade ou desfecho para o texto curto, decidido com o título de ‘Reconhecimento’.

A palavra sugere um exame para o reconhecimento da transformação que se processou, e segue acontecendo, a partir do isolamento social.
E conta com a arte poética de Fernando Pessoa delimitando o espaço, ao tempo em que amplia infinitamente as possibilidades do acontecer “neste quarto de uma casa”.
E com o texto de Eckhart Tolle conferindo propósito, ao dar o “tom espiritual” ao período que vivemos.

A saída é para dentro
O escritor Eckhart Tolle, na sua obra “Um convite para o despertar”, sugere o mergulho para dentro de si, lembrando o esboço da figura em postura meditativa: “a saída é pra dentro”.

No primeiro livro, “O Poder do Agora”, Tolle relata sua experiência de iluminação súbita e espontânea e do período de maravilhamento que se seguiu, e que acabou por torná-lo um mestre espiritual.
Seu trabalho, desde então, tem sido esclarecer o estado de segurança inabalável e o pleno e pacífico bem-estar.
Ele busca transmiti-lo como algo inerente e acessível a todos os que se disponham a reconhecê-lo em si mesmos.
Transcrevo abaixo o texto **, que permanece como sugestão muito atual.

A transformação pela pandemia
Devemos nos reconhecer novos, no sentido de diferentes, depois desse tempo.
Alguém pode dizer: sempre somos modificados, em qualquer tempo.
E estaria certo. Mas neste tempo que nos tocou viver, reclusos num lockdown de pandemia e conosco mesmos, numa situação tão diferente do que conhecíamos, houve uma intensificação da nossa chance de mudança.

Mudar de acordo com a plataforma não estática do mundo novo que vamos encontrar depois desta primeira etapa. E que vamos seguir construindo e expressando naquilo que nos transformamos e seguiremos nos transformando.

Então cabe um olhar sobre o que percebemos de diferente em nós.
Podemos iniciar este inventário, se já não o fizemos, ainda sós, nos espaços de confinamento ou com os entes que nos acompanharam, em geral, poucos.
Ou observando atentamente nosso comportamento e reações ao nos depararmos com o mundo exterior nessas saídas esporádicas.
Na contemplação sucessiva, se conhecendo e reconhecendo, admirando o resultado a cada etapa, abrimos a possibilidade do viver mais consciente, garantindo a continuidade do propósito maior da nossa vida.

* Ceifeira, de Fernando Pessoa
“Não, não é nesse lago entre rochedos,
Nem nesse extenso e espumeo beira-mar,
Nem da floresta ideal cheia de medos
Que me fito a mim mesmo e vou pensar.

É aqui, neste quarto de uma casa,
Aqui entre paredes sem paisagem,
Que vejo o romantismo, que foi asa
Do que ignorei de mim, seguir viagem.

É em nós que há os lagos todos e as florestas
Se vemos claro no que somos, é
Não porque as ondas quebrem as arestas
Verdes em branco [ . . . ]

** Um convite para o despertar, Eckhart Tolle
Se você não se aprofundou o suficiente, se não encontrou nada além da mente, do pensamento conceitual, então a adversidade, qualquer que seja (neste caso, sabemos o que é), irá consumi-lo.

E mesmo se você não adoecer ou contrair o vírus, o medo o consumirá, pois está consumindo milhões de humanos neste momento.

Se você soubesse quem / o que você é, perceberia que não há nada a temer. Somente se você não se conhece, o medo surge.

Torne-se consciente de si mesmo, não do eu conceitual, não do seu eu pessoal, da sua história, mas tome consciência de si mesmo como presença consciente.

O pensamento não o ajuda aí. O pensamento é um obstáculo. Portanto vá mais fundo que o pensamento e fique completamente acordado e presente, sem atividade mental.

Esse é o começo da realização de sua essência eterna e atemporal. É uma dimensão mais profunda da consciência mais do que aquela com a qual você normalmente se identifica.

Encontre essa base inabalável que está profundamente dentro de você, dentro de todos.
A adversidade é uma oportunidade maravilhosa porque força você a ir mais fundo.

A vida se torna quase insuportável quando você vive apenas na superfície das percepções sensoriais e de sua mente conceitual, e então você ouve as notícias e lê todo tipo de coisa, e todos estão em estado de medo – devido a uma casa construída na areia.

Este é um convite para o despertar para quem você é, porque se não o fizer, sofrerá desnecessariamente. Milhões estão num estado de ansiedade.

Mas use isso como uma chance de despertar. É uma oportunidade de chegar a essa conclusão de que você é muito mais profundo do que conhecia antes.

Você deveria prestar mais atenção a sua própria consciência do que aos noticiários e seja lá o que ouça ou assista. Use esse tempo precioso , ele faz parte do despertar da humanidade.

Os seres humanos não despertam em sua zona de conforto. Eles despertam quando são retirados de sua zona de conforto, quando não aguentam mais o sofrimento ou a infelicidade.

Sinta a vitalidade, tome consciência daquela presença que é inseparável de quem você é. Essa é uma realização incrível!

Há mais para você do que a realização pessoal! Essa presença é mais profunda que a pessoa. Você precisava da adversidade para encontrá-la ou aprofundar a realização.

Há um ditado que diz: “Quando o ego chora pelo que perdeu, o espírito se alegra com o que encontrou.”

O que parece ruim e muito negativo na superfície, como um obstáculo ao bem estar da humanidade, do ponto de vista convencional, na verdade tem uma função essencial.

Portanto esse é um momento de grandes oportunidades. Use-o. Não o desperdice. Não se perca na mente. Não se perca no medo.
Esteja enraizado nesta rocha que é a sua identidade essencial.

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Diário da quarentena – E agora, mané?! O que fazer com as saudades do cafezinho após o almoço nas ruas do Centro?

Por Lui von Holleben*

Se eu perguntasse para Zininho: “Qual a melhor parte da vida?”, ele provavelmente responderia cantando seu “Rancho de Amor à Vida”:
“Viver, amar, sorrir, cantar! / Andar pelas ruas da minha cidade /Sem ter que seguir e sem ter que voltar / Curtir, o sol, o céu e o mar / Camisa aberta no peito / E no coração muito amor pra dar!”

E não poderia deixar de concordar.
Viver, respirar e amar o Centro de Florianópolis, se resume às palavras do poeta.

Com o Covid-19 e todos os necessários cuidados e restrições, estamos como diria Djavan: “morrendo de sede em frente ao mar”.
E então, ficamos saudosistas para algo que vivemos há poucos meses: o último Berbigão do Boca, o último Carnaval (juro que nunca mais reclamo de muita gente aglomerada); dos cafezinhos depois do almoço pelas ruas do Centro e da família unida.
Também das tardes de futebol com um chopp gelado ou simplesmente de ver Floripa acordando para mais uma semana de trabalho.

Lembrei de 2001, o ano que a Ilha apagou.
Dias estranhos na minha infância, onde a família só deixava sair de casa de dia pelos perigos da escuridão.
Hoje estamos conhecendo uma escuridão diferente.

Tomando a licença poética de Drummond… pergunto a vocês leitores, e agora, mané?

“E agora, Mané? / o boi de mamão acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a Praça XV esfriou, / o dominó se guardou, / e agora, mané?/ E agora, você?
Está sem a turma,/ sem o Mercado Público,/ sem a Lagoa, / sem o Daza, / sem o futebol,/ já não pode o cafezinho tomar, / e agora, mané?
E agora, mané?/ sua caminhada preferida, / a tainha frita, / a cerveja gelada, / seus causos, / os planos, / sua Ilha – e agora?”

Ah! Enquanto ficava me perguntando: “E agora?”, criei um curso online gratuito para ajudar quem perdeu o emprego a performar melhor na carreira e em processos seletivos.
Também aproveitei a quarentena para eternizar a Ilha na minha pele – arte do talentoso Felipe Besen.
E até apareci no Cacau, o amarelo!
Enfim, vamos vivendo e aprendendo a jogar!

Li uma frase da mineira Adélia Prado e aproveito para citá-la para finalizar meu singelo texto: “Aquilo que a memória amou, fica eterno!”.

Vamos lembrando da nossa Ilha, do nosso Centro, entre máscaras e medrosas interações, por enquanto.
E se Deus quiser, em breve, estaremos aproveitando novamente.
Como canta o Dazaranha: “… um oceano, um mirante, um sorriso – que essa Ilha não pode perder”.

* Especialista em startups e morador apaixonado do Centro.

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Homossexuais podem doar sangue: viva a igualdade e a liberdade!

Por Orlando Celso da Silva Neto (professor de Direito da UFSC)

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) Nº 5543, que alegava a inconstitucionalidade da inabilitação temporária de homens que fazem sexo com homens para doação de sangue, conforme portaria do Ministério da Saúde e a resolução da Anvisa.

O resultado do julgamento, no início de maio, foi sete votos (Edson Fachin, Carmen Lúcia, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Roberto Barroso e Rosa Weber) a quatro (Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski).

A restrição contida nas normas afastadas tinha por propósito declarado reduzir riscos ao sangue doado, evitando assim que recebedores de sangue viessem a desenvolver patologias existentes e transmissíveis pelo sangue dos doadores.
Na década de 80 e 90, há registros de transmissões de doenças por sangue. Uma das medidas à época, quando testes eram difíceis e pouco confiáveis.

Esta boa intenção da norma foi reconhecida no voto do ministro Fachin, relator da ação, que reconheceu sua inadequação e inconstitucionalidade, tendo a considerado uma “restrição desmedida com o pretexto de garantir a segurança dos bancos de sangue”

A conclusão foi que as medidas “ofendem a dignidade da pessoa humana, impedem as pessoas por ela abrangidas de serem como são vituperam os direitos da personalidade , aviltam o direito fundamental à igualdade ao impedir as pessoas destinatárias da norma de serem tratadas como iguais em relação aos demais cidadãos”

É claro que a proteção do sangue doado tem que ser a maior preocupação da norma, mas não há razão para se acreditar que haveria maior risco na doação por homossexuais que por heterossexuais.
Para a segurança do sangue, basta que o doador não tenha práticas sexuais promíscuas. O risco existe na promiscuidade e na existência de parceiros múltiplos, não na opção ou identidade sexual.

Aplicou-se o princípio constitucional da igualdade perante a lei sem colocar em risco a segurança do sangue doado. Excelente decisão que assegura que todos são iguais perante a lei, sem preconceito de orientação sexual. Enorme vitória dos princípios da igualdade e da liberdade, exigindo-se responsabilidade!

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Diário da Quarentena – Sensação de urgência, ebulição, desconcentração e cuidados com a demência do pai

Por Elaine Tavares*
Acho chique quem, nesta hora pandêmica, consegue ler Hegel, estudar, escrever tese.
Eu não consigo.
Acordo de manhã, estupefata. Ufa. Tô viva.
Olho para o lado e o peito do pai tá subindo e descendo. Outro alívio.
Levanto, dou comida pra os bichos e, com renovada surpresa, vejo despertarem meu companheiro e meu sobrinho.
Ufa de novo.

A manhã passa rápida, consumida no trabalho das coisas do Iela (Instituto de Estudos Latino-Americanos).
É o momento em que consigo suspender o pensamento e focar no que tenho de produzir do meu trabalho.
Faço o que posso, distribuindo textos e vídeos, mas não tenho conseguido escrever em profundidade. Tudo está nebuloso.

A tarde passa e eu, nos cuidados com o pai.
E o tempo todo essa turbulência no espírito.
Estaremos vivos amanhã?
Tento ler um livro, não dá. E quando a noite chega me encontra ainda nessa ebulição.

Falo com amigos, família, mas a sensação de urgência continua.
E até o pôr do sol é vislumbrado com uma nostalgia maior. De noite vejo as notícias e meu coração ensombrece. O mundo me dói.
As pessoas morrendo sozinhas nos hospitais me doem. Os enterros solitários me doem. As pessoas chorando na porta dos hospitais me doem.
Não consigo ficar de boa. Tudo está tão triste.

Não entendo como algumas pessoas podem seguir vivendo como se nada. Eu sinto uma profunda tristeza.
O Brasil me dói.
Pela pandemia, pelo mau governo, pela inconsequência dos que ocupam o poder.
São dias sombrios. Queria mais do que notas de repúdio. Não sei.

Queria poder ficar leve. Mas não dá. Espero o sono, inquieta e incapaz de fixar atenção em nada. Acordo no meio da noite e olho para o pai. Respira. Volto a dormir.
E no dia seguinte, acordo, estupefata.

O isolamento e o pai
O isolamento social tem cobrado seu preço aqui em casa. Misturado com a demência do meu octogenário pai, o resultado é um desastre.
Primeiro que os dias se converteram todos em domingo, com todo mundo em casa.
E com mais gente circulando, o pai perde a centralidade da atenção. Fica com ciúmes e aí é um deus nos acuda.
Agride todo mundo, perde a tramontana e fica num vai-e-vem sem fim, como um bicho acuado. Faz a volta na casa umas mil vezes, andando sem parar, e quando fica bem transtornado começa a se meter no meio das árvores, dos arbustos, da plantação.

Tudo isso é um risco tremendo, e tenho de ficar andando atrás dele porque se deixo sozinho, ele pode cair e se machucar.
Não aceita que eu segure seu braço, então só posso ficar como uma sombra, rezando para conseguir segurar se ele for ao chão.

Sem poder sair de casa, a rotina do pai se quebrou e, com isso, também quebra alguma coisa no cérebro, imagino eu.
Nos primeiros dias de confinamento eu ia inventando uma mentira ou outra, mas com os passar do tempo já fui perdendo os argumentos.

E ele fica no portão, com os olhos num vazio cheio de desespero.
Existe uma tal de síndrome do pôr-do-sol que se constitui num desejo irrefreável de sair, de “ir pra casa”.

E a única forma de fazer esse desespero passar é sair, caminhar, encontrar pessoas, distrair. Sem isso, vem a violência, a raiva, e a descompensação.
Isso tem seus reflexos durante o dia todo e fica ainda pior durante a noite. Aí mistura tudo.
A aflição pelo vírus que aí está e que pode atingi-lo, e também pelo estado de sofrimento que o confinamento tem causado.

Outro dia, quando a rua parecia vazia de gente, eu abri o portão e pensei: vou andar com ele uns metros e voltar.
Mas, ele queria ir no barbeiro e como sabe o caminho foi me arrastando. Tive de usar todas as artes e sortilégios para fazê-lo voltar. Voltou emburrado e a emenda ficou pior que o soneto.

A ânsia por sair agora também aparece durante a noite e, do nada, ele levanta da cama e sai andando no rumo do portão.
Se eu tranco a porta é um escândalo, então tenho de deixar sair. Procuro cobri-lo com bastante roupa quente, mas ele vai arrancando tudo.
E eu tenho de ir recolhendo e tentando colocar tudo de volta, afinal, as noites são frias.

Ele finca o pé no portão e não sai. Eu pego a sombrinha e abro, para tentar evitar o sereno.
A cena é louca: na madrugada estrelada, eu com a sombrinha aberta no portão.
É um terror digno de Stephen King.
É o vírus, é a demência, é a possibilidade de uma gripe qualquer, uma descompensação maior.
Tudo é sofrimento.

Um pouquinho de paz vem de manhã quando Rolando Boldrin consegue segurar sua atenção. É quando eu também consigo colocar em dia o trabalho, que igualmente me cobra tempo. E é uma dureza tentar concentrar depois de todas essas aventuras, sabendo que ‘logo, logo’ elas vão recomeçar.

Nesse turbilhão estou já quase mergulhada na demência também.
O pouco de sanidade me vem dos livros, os quais vou sorvendo quando possível, como se fossem pequenos oásis no deserto da solidão.

* Jornalista e servidora da UFSC

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Diário da Quarentena Narrativas do Centro

Diário da Quarentena – Coordenar 13 pessoas, cuidar dos pais, fazer rosquinhas e pintar os próprios cabelos

Por Maria José Baldessar*

Cada vez que alguém me pergunta o que tenho feito na quarentena, eu respondo: fico em casa sempre que posso.
Desde o dia 16 de março, quando a UFSC estabeleceu o sistema de home office, tenho ficado em casa, trabalhado muito – a gente trabalha mais, pois mistura as coisas do dia a dia (lavar roupa, cozinhar, limpar a casa) com o cotidiano de trabalho.
No meu caso, presido a Coperve (Comissão Permanente do Vestibular da UFSC), e tenho 13 servidores sob coordenação, que trabalham com tecnologia de informação, logística, coordenação pedagógica das provas etc.

Nos dias sem pandemia, depois do trabalho ou nos fins de semana, sairíamos com Zeca, meu companheiro, para colher goiabas no Parque da Luz, caminhar na Beira Mar, tomar uma cerveja no Centro, ver a feira nos sábados e domingos, assistir futebol na televisão e compartilhar uma garrafa de vinho junto com uma comida gostosa.

Nesses dias de pandemia, estou em casa com meu sobrinho Enrico, que preferiu vir para cá a ficar sozinho na casa dele.
Ele é estudante da UFSC e os pais são médicos, estão na linha de frente no combate ao coronavírus, e moram longe. Nossa rotina é dentro de casa.

Para enfrentar o dia a dia de trabalho em casa, tenho uma rotina.
Todo dia, às 8h da manhã, via Whatsapp, distribuo as tarefas para a equipe da Coperve e fico atenta aos chamados e questionamentos de cada um. Com eles, encerro o dia às 17h30.

Nas segundas-feiras, tenho reunião com o colegiado da gestão da UFSC (reitor e pró-reitores) por teleconferência pela manhã.
Nas terças à tarde, com as coordenações da Pró-reitoria de graduação.
Como oriento mestrado e doutorado em dois programas de pós-graduação, nos outros dias, programo conversas com alunos por vídeo-chamada, discuto o andamento das monografias, dissertações, teses e produção de textos.

Em alguns casos, encaminho para conversem uns com os outros, à distância, para resolver problemas e trocar ideias.
Em relação ao trabalho, o mais difícil nesse processo de isolamento social é a tomada de decisões.

Na vida familiar, a coisa é mais complicada. Meu companheiro está na Pinheira fazendo companhia para a mãe dele, que é grupo de risco.
Ficamos mais de 20 dias sem nos ver e falamos ao telefone uma vez por dia.

Como também tenho pai e mãe idosos (86 e 85 anos), e eles estão em quarentena em casa, ali em Capoeiras, nos sábados pela manhã vou para lá e fico até domingo: cozinho, converso e limpo a casa.
Para eles, a minha chegada é uma mudança na rotina e, por isso, tenho valorizado esse tempo.
Resumindo: nesses dias lindos de março e abril tenho trabalhado e cuidado de casas e pessoas.

Os desafios: a quarentena me desafiou a fazer receitas novas, como rosquinhas de polvilho azedo, e coisas inimagináveis como pintar o meu próprio cabelo.

Os medos: que uns romantizem de tal forma a quarentena e esqueçam que ela só é romântica para quem tem a geladeira cheia e a possibilidade de ler, escrever, cozinhar ou limpar a casa.

Que outros, levados pelo senso comum, acreditem que é só “uma coisa passageira” e que venham a enterrar familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos sem “choro nem vela”.
E outros, levados pela necessidade extrema, se contaminem e morram sem assistência ou sem piedade.

* Jornalista e professora da UFSC

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Diário da Quarentena – As duas quarentenas do Cachorrão

Por João Carlos Mendonça*

A minha quarentena, na verdade, foram duas. Cheguei do Recife dia 16 de março depois de férias num baita resort.
Tudo pago com meu dinheiro.
Cheguei e o porteiro foi logo avisando. “Seu João, ‘temos’ na quarentena, pandemia, coronavírus”.
Num primeiro momento não dei bola e saltei.
“Isso é uma briga biológica entre Estados Unidos e China”.
Que nada!
Não era um resfriadinho, nem uma gripezinha.
O negócio era sério.

Naquele mesmo dia queria ir reencontrar a ‘cacaiada’ no Érico Bar, aqui na Hercílio Luz. Alertado pela filha e pela sobrinha, que é médica, recolhi os panos.
Fiquei em casa.

No dia seguinte, e ainda de férias no trabalho, é que a ficha começou a cair.
O que comer? Onde comer?
Mas, primeiro lavar tudo. Roupas, limpar a casa e passar o tal do álcool gel.
Não, não tenho álcool gel. Fui comprar.

No Imperatriz, nem pensar. Foi fechado pela vigilância. Funcionários infectados.
Nas farmácias. “Estamos em falta”.
Numa delas, da Avenida Mauro Ramos, tinha. Muito caro.
Subi a Crispim Mira e fui no Hipoo. Tinha álcool gel. E barato. Comprei logo dois.
Volta pra casa.

Ver filmes no Netflix? Bela opção.
A filha sugere “Mistério da Cela 7”.
É triste, diz ela. Mas, encarei.
Muito triste, mas uma bela história.
Dividi em duas partes. Uma naquela noite e o restante no dia seguinte. Baita filme. Produção da Turquia.
(Ova conseguiu salvar o Memo).
Chorei. Assistam.

E assim vai indo essa quarentena. Pede almoço, compra pão na padaria (não esquece aquele cigarrinho), leite também, e se tiver guloseimas traz umas.

Agora vamos torcer pra tudo isso acabar. Vai acabar.
E esperamos um mundo novo. Mas solidário, mais humano, com menos briga, menos orgulho, mais paciência, mais amor e menor rancor.

Ah, mas, por que as duas quarentenas sobre quais falei no início?
Uma biológica, e a outra porque no dia que cheguei de viagem decidimos terminar a nossa relação. Eu e ela.
Portanto, tô na pista galera!
Vida que segue…

* Jornalista, morador do Centro e conhecido como ‘Cachorrão’

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Diário da Quarentena – Como chorar na beira da calçada se não podemos sair?

Por Chiko Kuneski*

Vida virada
A rua está esquecida, solitária, triste
Um vácuo do nada, de tudo, vazia
Nem mesmo uma só vadia
Cadela, calada, e nem sexo

A rua perdeu seu nexo
Com todo mundo desconexo
Nem um vadio, vagabundo
Feito fantasma madrugador
Vagando penado pela rua, só vaga o mundo.

Este meu poema traduz o olhar do confinamento, isolamento social, quarentena, deem o nome que derem. Acabamos forçados e olhar o mundo pela janela… mas o mundo tem um só momento. Lento, estagnado.
Triste? Não sei. Acho que depende do que aprendermos com essa realidade da Terra parada.

O olhar envidraçado para as ruas do Centro, sem viva alma, sem alma, não é tão diferente daquele que dávamos caminhando nessas mesmas ruas.
Olhar para o nada. Correria, sem tempo, olhar para fantasmas, diurnos e noturnos, que só passavam como nos passávamos.
Na pressa da falta do tempo alegado, dificilmente víamos o da frente, o do lado.
Como nesse isolamento, nos isolávamos com a desculpa da falta de tempo, da vida moderna.

O que mudou ficando em casa a olhar as ruas sem nem almas?
Uma pergunta de muitas respostas.
Mas, com a certeza que todos mudamos.
Deixamos de ser meros mundanos, para dedicar mais tempo, agora sobrando, a nós mesmos.
Às coisas que sempre alegamos falta de tempo, mas que dizíamos querer realizar se a vida corrida deixasse.

O olhar pára no espelho, que antes era rápido e somente para arrumar a barba, o cabelo, passar batom, mirou nós mesmos.
Achou cabelos brancos nunca vistos, rugas sutis da vida que estava nos passando, como passávamos pelo espelho. Correndo contra nós. Não deixávamos o aço nos refletir; nem nos víamos.

Cada um usou a sua “sobra de tempo” como pode. Uns para rezar. Outros para reclamar. E, como eu, para deixar aflorar mais um talento engavetado na correria de um tempo que sempre corríamos atrás.
Voltei para a poesia. Ou ela, sutil, matreira, voltou para mim, para o tempo que nunca tinha.

Com a poesia, realizei projetos antigos, até de escrever músicas com um parceiro amigo. Criamos um canal no YouTube. Nem eu, nem ele, tínhamos tempos para nós mesmos.
Para nossos projetos de pura diversão.
Está sendo um tempo difícil? Inevitável.
Mas o segredo é voltar a ser senhor do tempo. Retomar o comando dele na vida.
Ou entendemos isso, em nosso próprio confinamento, ou sentamos na beira da calçada e choramos.
Mas nem podemos sair de casa para achar o meio-fio…

* Jornalista e poeta, morador do Centro.

(Se despertei curiosidade… CLIQUEM AQUI!)


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Diário da Quarentena – Otimismo e esperança numa hora dessas?

Por Rogério Kiefer *

Uma luz diferente e o início do Outono tornam os dias de abril e maio, de fato, os mais bonitos do ano em Florianópolis.
E a paisagem aqui no Centro comprova isso.
No feriado de Tiradentes, acordei cedo, escancarei a janela, senti nos cabelos o calor brando do sol, vi as árvores mais verdes, o Hospital de Caridade imponente, a Baía Sul com barquinhos do Martinelli.

A reação foi imediata. Bati a vidraça. Fechei a persiana. Empurrei o guarda-roupas para fechar a rota de acesso à janela antes de ser contaminado.

Otimismo e esperança a uma hora dessas?
Até pega mal.

Lembrei de uma vizinha, sábia senhora que esperava sempre o pior de qualquer indivíduo ou situação. Quando apareci diante dela com o primeiro brinco – o crucifixo pendurado em uma argola, inspirado no George Michael – foi enfática: “você, meu querido jovem, terá um futuro de fracassos e será motivo de vergonha para sua família”.

Tante Berta, como a chamávamos, distribuía sentenças desse tipo a torto e a direito – e comemorava cada vez que a rotina da vizinhança mostrava o acerto de um mau agouro.
“Isso até me entristece”, dizia sem muita sinceridade. “Mas prefiro ter razão a ser feliz”, completava, verdadeira.

Alguns fatos das últimas semanas reforçariam em Tante Berta a convicção de que é preciso esperar sempre o pior.
A corrida pelo papel higiênico. A invasão às farmácias para estocar Cloroquina, mesmo após o aviso de que o medicamento faria falta para pacientes com lúpus.
A tranquilidade no olhar de jovens que repetem e repetem que só os velhos morrem de Covid-19. Os discursos do presidente e as manifestações pró-AI5 na porta dos quartéis. Em geral, os pessimistas devem estar entusiasmados com as incontáveis oportunidades que permitem repetir o bordão predileto do sabichão: “Eu avisei”.

Mas, talvez, tudo não seja assim tão simples.
Freud explica – explica mesmo! – e pode pôr a pensar aqueles que acham que o humano é um projeto fracassado.
O homem é um animal. Diante do medo, da proximidade da morte ou para satisfazer seus instintos, ele comete certas insanidades e, muitas vezes, é egoísta e estúpido.

Agora a boa notícia. Os indivíduos, que na essência mudaram muito pouco desde que largaram o tacape, são domesticados.
A cultura, os costumes, muitos traduzidos em leis, e a vida em comunidade adestra o bicho. A sociedade é criação humana capaz de punir hábitos que nos envergonham e que serão abandonados pela maioria e validar comportamentos importantes para a evolução da espécie (curiosidade: esses gestos validados e repetidos geração após geração são os memes).

Em tempos de pandemia, quando alguns veem sinais da morte iminente em cada espirro, vale um pouco de tolerância. Um sujeito não está perdido para sempre por um pequeno deslize.

Os dias logo voltarão ao normal – e apenas os boçais ancestrais seguirão incapazes de pensar no outro e respeitar a comunidade, como acontece na maior parte do tempo.
Mas eles são minoria. A maioria, assim espero, está tentando fazer o melhor enquanto aguarda que a vida volte ao normal.

Otimismo e esperança a uma hora dessas?
Quem sabe…

* Jornalista e morador do Centro

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Diário da Quarentena – Os dias de isolamento deveriam ter 30 horas, como os bancos!

Por Marcos Castiel *

Pensa num sujeito hiperativo! Multiplica ao cubo.
Tipo o seguinte: imagina esse cara assim: corredor de maratona (muitas vezes treina de 2 a 3 horas por dia, seis dias por semana); o sujeito ainda cursa a terceira faculdade de sua existência e planeja, depois dos 50, mudar seu campo de trabalho da área de humanas para área de saúde!

Espera, dá para colocar pimenta! Bom, o cara ainda é pai de dois filhos e tenta morar em duas cidades ao mesmo tempo.
Numa, Porto Alegre, faz faculdade e estágio na prefeitura, atendendo numa clínica de um bairro pobre da cidade.
Na outra, Floripa, visita um dos filhos (a filha, na real, já que o filho mora com ele em Porto), e sua mulher e sua cachorrinha, geralmente nos finais de semana.

Tá inviável? Então imagina tudo isso, trabalho, filhos, corridas, duas cidades, estudo e o cara tá numa vibe de aprender hebraico!
E ler a literatura técnica, mais artigos de sua nova área, mais fazer as tarefas da faculdade. Ainda dar uma trabalhada no antigo trampo de mídia para o sustento!
Pois é, agora pega ele e tranca em casa, sem aviso prévio!

Lembrando que o sujeito cinquentenário se desloca na cidade de bicicleta para seus compromissos!
Pois é, o Corona colocou vários tipos de pessoas em quarentena: mas este cara, euzinho, o condenou ao desafio dos desafios.

O vírus certamente pensou em sua minúscula existência.
Como pará-lo? Afinal não teve maratona, tese de pós-graduação, desafio laboral, nada, absolutamente nada, que o detivesse!
Mas o vírus tinha um plano.
O ser vivo que não é vivo (ou é, sei lá, ninguém sabe) projetou uma cilada, um laço de passarinheiro, o que de mais insondável haveria para esta mente inquieta, para essa alma insaciável: parar.
Abstrair; não se locomover; desacelerar!

(A crônica continua após o vídeo, mas se preferir ouvir o próprio Marcos Castiel contando a sua história…)

A todos que acham difícil estar em casa nesse momento, entre no corpo deste inquieto, na mente presa entre quatro paredes deste homem, na alma aprisionada deste incontrolável ser quântico!
Não é possível sequer imaginar o contexto, nem mesmo se solidarizar com o escriba, simplesmente por não ter referência. Então, te conto o que ele fez…

Sabe, a depressão era uma opção. O dolce far niente, regado a séries de TV e alguns traguinhos também era possível.

Mas preciso te dizer que mentes assim cocriam realidade.
O que faria trancafiado em casa uma mente que já aprendeu inglês para cobrir uma Olimpíada em Londres, rudimentos de chinês para cobrir a Olimpíada em Pequim, Espanhol para cobrir a Copa no Uruguai e para entender os amigos argentinos que ama tanto!
Ora, aproveitaria o confinamento para aprender hebraico, certo? Certíssimo! E assim, fez!

Bom, as aulas EAD da faculdade vieram ao natural e a galope.
Então, estudar pelas manhãs era só a cerejinha do bolo. Faltaria mais para este ser, vocês agora concordam, né!?

E sacudir o esqueleto, qual a solução?
Ora, simples: correr loucamente nos corredores de casa, por incontáveis minutos e vai-e-vens até perfazer distâncias de longões.
Inclusive fazer isso em uma live para compartilhar tal possibilidade com amigos.
Isso é algo que você faria, né? Não? Sério? Não entendo estes humanos.

Mas só correr? Oras, porque não procurar a triatleta e professora de educação física, sua amigona Sara, para planejar exercícios para você? Feito!
E seguir as aulas de sua assessoria desportiva, ministradas pelo Guilherme e pelo Remiâo? Feito!

Sei, você cansou só de ler, imagina um louco fazendo tudo isso em casa?
Mas não dá para ser egoísta né!
Afinal, confinamento pede introspecção e a busca da convivência!
Então, você ajuda a lavar a louça, a limpar os armários, a pentear os longos fios de sua lhasa e a secá-la, pacientemente, após o banho caseiro dado pela heroica dona Angela!

Bom, as 24 horas pareciam repletas. Mas era preciso preencher 30 horas.
Porque se tem banco 30 horas, tem que ter ser humano 32 horas!
Então o cocriador de realidade entrou em ação e pensou: ora, tenho que me acalmar de algum jeito. Então, buscou encaixar meditações e orações.

Dá para dizer que, dentro de casa, agora, estava mais legalzinho, mais parecido com sua vida original. Mas faltava algo ainda.
Afinal, por incrível que pareça, o capricorniano louco viu que sua agenda lhe permitia estudar, treinar, ser pai, marido e ainda sobrava um tempinho! Acredite!

Então, ele resolveu aproveitar que em breve estará formado em Nutrição e partiu para preparar suas redes sociais.
Só tinha um porém: ele que sempre comandou equipes, nunca a si mesmo, precisava orientar, ralhar e ralar consigo mesmo!
Confesso: fiquei várias vezes indignado com minha inaptidão em certos afazeres, pensei em demitir a mim mesmo. Mas voltei atrás e mantive o funcionário.
Valeu a pena.

Mas eu escrevi isso tudo para te perguntar uma coisa e te pedir outra!
Perguntar se tu tá mesmo achando difícil ficar em casa?

E te pedir para ser meu paciente de Nutrição Funcional e esportiva daqui a um ano!
Bom, era isso.
Não escrevia tanto desde que larguei a carreira de jornalista.
Mas tô um pouco preocupado: acho que quando formos autorizados a retomar a vida normal, não conseguirei abandonar a nova vida doméstica.
Será impossível?

* Jornalista e nutricionista em formação

O Floripa Centro criou este espaço para que moradores da região central de Florianópolis possam partilhar como estão passando a quarentena, enquanto o coronavírus não passa!

Quer mandar o seu relato?
Escreva o seu depoimento (entre 2 mil e 5 mil caracteres com espaço) e envie para portalfloripacentro@gmail.com, junto com fotos do autor no isolamento.

Se desejar, também pode mandar um pequeno vídeo.

 

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Ah, que saudades de curtir um bom boteco raiz no Centro

Por Frutuoso Oliveira

Hoje é mais um dia de isolamento social. Tenho me ocupado bem nesse período.
Em casa, com a minha companheira Claudia e o cachorro Lupicínio.
São dias de solidariedade e parceria.

O Lupicínio é quem menos entende a situação.
Sai rapidinho fazer suas necessidades e já volta. Cadê sua a rotina?
Assim como eu, ele também adora bares.

E hoje amanheci com uma saudade daquelas de sentar em um boteco.
Um boteco raiz. E pedir uma gelada.
Saudade de descer para o térreo do prédio, na Felipe Schmidt, no Café no Bule, e ouvir seu Manoel reclamar do “Bolsonário”.

Ouvir as histórias do Katinha, de quando chegou matuto no Rio de Janeiro para brilhar na ponta direita do Vasco da Gama.
E depois em tantos outros times desse Brasil afora.
Saber do Batista a quantas anda sua luta contra o neoliberalismo.
Saudade até de discutir, respeitosamente e, às vezes nem tanto, com a turma da nova direita.

Quanta falta do bate-papo no bar do Neri, lá em Coqueiros.

Falar com o colorado Brun e ouvir seus argumentos de que ainda é possível fazer uma revolução neste país.
E o Manú, o cara que torce para um time em cada estado brasileiro.
E o amigo Roberto e sua conversa ponderada, sempre colocando, no meio, frases em italiano e agora, mais recentemente, em francês.
Estou sentindo muita falta.

Saudade da turma do Mercado Público.
Toninho sempre lutando contra o sistema. Ademar defendendo o Bolsonaro.
Saudades do Paulinho, do Mota e do Fernando Braga com suas tiradas engraçadas.
Saudade até da conta, sempre suspeita, que o Lourenço me apresenta, depois de me servir várias Heinekens estupidamente geladas.

Saudades da almôndega recheada com lingüiça Blumenau servida lá no bar do Ori.
Ah! Como eu queria hoje tomar uma gelada no Bolha’s, olhando para a orla de Coqueiros.

Que falta me faz o centro leste da nossa Floripa.
Ali do outro lado da Praça XV: nas ruas João Pinto, Tiradentes e adjacências.

A turma do bar do Alvim. Do peixe frito com pirão de feijão.
A alegria contagiante do Fernando Fernandes.
Até das bolsonices do Neto tenho sentido falta.

E quando teremos novamente nossa roda de samba na Travessa Ratcliff?
As empadas da Sonia, na Empadaria Mineira, a Heineken gelada do irlandês e o papo de política com o sempre bem informado Upiara Boschi.

Saudades de ir na Tralharia, sentar com o Lupicínio, e ouvir sempre uma boa música acompanhada de um chope gelado.
Saudade de um happy hour na Hercílio Luz, com todas as aquelas pessoas lindas, cheias de vida, tomando cerveja de litrão.

Mas eu tenho fé, que tudo isso vai passar.
Vamos superar essa pandemia. Com a cabeça no lugar, fé em Deus e amor no coração.
E em breve, teremos tudo isso novamente.
Muito em breve.
#fiqueemcasa

Confira aqui as reportagens do Floripa Centro

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Periferia de Florianópolis será a mais afetada caso não receba atenção especial do poder público, alerta Padre Vilson

O Padre Vilson Groh, reconhecido pela sua atuação de quatro décadas junto às comunidades carentes da Grande Florianópolis, faz um apelo para tentar evitar consequências desproporcionais do coronavírus na periferia da cidade.
E apresenta algumas sugestões práticas que podem minimizar o efeito sobre as pessoas mais necessitadas da nossa sociedade.

Confira o artigo ‘Pandemia e eqüidade’:
A equidade é um dos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS) e tem relação direta com os conceitos de igualdade de direitos e de justiça.
Isso fica evidente, por exemplo, no atendimento aos indivíduos de acordo com suas necessidades, oferecendo mais, a quem mais precisa, e menos, a quem requer menos cuidados.
Busca-se, assim, reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde e também nas necessidades das pessoas, considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações sociais e deve atender à diversidade.

Proporcionalmente, morte de negros é maior
Durante os últimos dias temos notícias preocupantes sobre os primeiros sinais do avanço da pandemia sobre as periferias das maiores cidades brasileiras.

Os fatos sugerem o mesmo padrão que estamos vendo de forma mais adiantada nos EUA.
Tudo aponta para um agravamento maior do coronavírus nessas populações.
As mortes de negros em algumas cidades americanas chegam a ser percentualmente três vezes maior do que a proporção de negros que moram nesses centros urbanos, chegando a alarmantes 90% em Albany, na Georgia.

E os primeiros dados sobre a mortalidade de negros no Brasil, causadas pelo vírus, preocupam.
Considerando que só agora a pandemia está chegando às comunidades pobres, eles já são 1/4 dos internados e 1/3 dos mortos do país.
O fato é que, potencializado pelas desigualdades e condições sanitárias, estão morrendo mais negros do que o percentual que eles ocupam nas áreas atingidas.

Jovens vetores da disseminação
Outro grande problema é a imensa população jovem das periferias: sem aulas, sem alimentação, sem orientação familiar e sem informação direcionada e específica.
Projeções colocam eles, ainda que na maioria assintomáticos, como os principais vetores de disseminação da pandemia nessas comunidades.

Apesar de nossos graves e complexos problemas sociais, Florianópolis tem tamanho, mapeamento e presença das equipes de saúde da PMF/ SUS e capilaridade em projetos da sociedade civil que podem contribuir para que a gente consiga deter em parte essa onda.
E se tratando de vidas, deter em parte significa muito!

Sugestões para a periferia
Para isso, precisamos da presença do poder público e da sociedade civil organizada nessas comunidades, construindo ações como as que seguem:

Parceria com lideranças comunitárias:
– Criação de um canal permanente que una o poder público e os representantes das comunidades para centralizar as diretrizes, estratégias e ações do combate à pandemia nas periferias.
– Ao mesmo tempo em que se mantém intacta a autoridade de saúde e sanitária da cidade, os movimentos organizados da sociedade civil, que já têm raízes nas comunidades, podem auxiliar na prevenção e na operação local das ações, através da criação de forças-tarefas, uso das redes de voluntariado e das redes de comunicação.

Motivos para prioridade de testes na periferia:
– As piores condições estruturais para o isolamento social nas favelas, por exemplo, torna o tempo sem teste num grande disseminador do vírus nessas comunidades.
– Isso é muito mais danoso para a tentativa de bloqueio, do que a feita em bairros mais abastados da cidade.
– Os idosos dessas áreas, em média, vivem menos e têm mais comorbidades e fatores de risco associados.
– A maioria da população da periferia é composta por negros, que começam a aparecer consistentemente entre os grupos de risco.
– Projeções de que os jovens de periferia podem se tornar vetores que acelerem o contágio.
– Acesso muito menor à rede privada de atendimento de saúde, no caso dos agravamentos.

Comunicação direcionada para as comunidades:
– Cartilhas oficiais com linguagem específica e criativa, educando para os protocolos de segurança, levando em consideração as condições médias de vida e moradia das comunidades periféricas.
– Vídeos didáticos com dicas dadas por pessoas das comunidades ou pessoas reconhecidas pelas comunidades.
– Podcasts para que circulem nos telefones como uma rádio comunitária, acompanhando e alertando para a progressão da pandemia dentro desses bairros.

Esses são alguns exemplos, demandas de um contexto onde a velocidade dos fatos não permite que algo seja estanque.
No fundamento desses pleitos, nada mais que o cumprimento racional dos princípios de EQUIDADE, que sempre acompanharam o SUS.

Padre Vilson Groh

(A imagem de abertura é divulgação do Vatican News)

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– Semanalmente, Instituto Padre Vilson está entregando cestas básicas para 800 famílias carentes da periferia

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